24 de out. de 2011

Motovelocidade - O piloto e o poeta

Filho de Alois Feichtenberger, primeiro fotógrafo profissional de Goiânia, Kurt Feichtenberger começou suas aventuras sobre duas rodas aos 15 anos de idade, nas corridas de bicicletas nos primeiros anos da década de 1970. Mas, suando em cima de uma magrela, Kurt sonhava mesmo era com desafios mais radicais simbolizados por uma máquina de duas rodas impulsionada por um motor de combustão interna. Aficionado espectador das corridas que movimentavam as joviais ruas do centro de Goiânia em datas comemorativas, mais do que torcer Feichtenberger idealizava pilotar aquelas máquinas reluzentes e ágeis. Domar um cavalo de aço e fibra era a sua meta.
O pai era contra a ideia amalucada do menino Kurt. A mãe, com amor, uma certa dose de cumplicidade e a típica compreensão materna que move a maioria das mães do mundo, ajudou o candidato a piloto a amolecer o coração paterno. Não demorou muito para a garagem da família Feichtenberger comportar uma seminova Yamaha 50cc. 
A primeira moto de Kurt tinha história e estava acostumada a pilotos malucos e aventuras radicais. A pequena máquina foi adquirida do poeta Gabriel Nascente e tinha sido coadjuvante de uma das várias aventuras confessadas pelo bardo na obra O Copo das Ilusões, tendo à garupa o "também rapazola dos seus vinte anos, rebelde, irreverente" poeta e escritor Brasigóis Felício."Numa anuviada tarde de sexta-feira, decidimos colocar a minha moto - uma Yamaha, 50 cilindradas - na BR-153, com destino à Morrinhos. Razão: rever as nossas namoradinhas, a Gilma e a Cidália Goltz, as musas das nossas romanescas aventuras; hoje palco de ilusões perdidas... Mas faltava o capacete, o que obtivemos, na base do jeitinho brasileiro: emprestado, pronto, para zarparmos...Bati com o pé direito no pedal de partida da moto e gritei- "S´imbora, máquina!", abrindo o peito na direção da liberdade. A motocicleta, com capacidade para até 140 quilômetros por hora, ia singrando os ares da paisagem rural, que margeava o asfalto, de ambos os lados, com suas alfombras de copioso verde", trafega, poeticamente, Gabriel Nascente. 
No pódio
A sorte da valente máquina não foi melhor nas mãos iniciantes de Kurt. "Cheguei a correr com a cinquentinha", recorda. Em meados de 1972, tendo o inexperiente piloto ao guidon, a Yamahazinha enfrentava a pista de terra do Moto Clube de Goiânia. 
Depois de muito treinar e testar a resistência mecânica da pequena máquina, em agosto de 1974 o jovem Kurt provou o doce sabor da vitória e pisou nas nuvens do pódio ao vencer a primeira corrida regional do Autódromo Internacional de Goiânia, categoria 125 cilindradas. O gosto do triunfo fez saltar para as pistas o piloto arrojado que pulsava no peito de Kurt Feichtenberger.
De 1974 a 1981, o filho do fotógrafo tornou-se campeão e vice-campeão goiano, campeão e vice paulista e campeão e vice-campeão brasileiro na categoria 125 especial, além de campeão e três vezes vice-campeão da taça Centauro. "Muitas vezes, naquela época, usávamos a premiação para pagar o hotel", diverte-se. Graças às peripécias e ousadias do filho, o fotógrafo Alois Feichtenberger começou a ser conhecido como o pai do piloto Kurt Feichtenberger.
Casamento em duas rodas
A família de Kurt Feichtenberger respira motociclismo desde a sua fundação. Antes de seu casamento, em uma homenagem idealizada pelo motociclista e jornalista Fernando Campos, Kurt deu uma volta no Autódromo Internacional de Goiânia com a noiva à garupa, em uma Honda CB 400 vermelha, acompanhado de um grupo de motociclistas. Foi o primeiro casamento em duas rodas da história da capital goiana. 
Excesso de zelo
Além de desfiar um rosário de orações a cada corrida, Karoline Feichtenberger, mãe zelosa que cuidava da segurança do filho Kurt, fabricou com carinho e dedicação o primeiro macacão com tecido resistente envergado pelo destemido piloto. Como é de conhecimento dos espectadores e integrantes do circo da motovelocidade nos quatro quantos do planeta, a glória de qualquer piloto audaz é desfilar pelos boxes com o macacão raspado, gasto pelo contato com as pistas. Quanto maior o estrago, mais intensos são os olhares e demonstrações de admiração e respeito. Entretanto, em uma exagerada preocupação com a aparência do jovem piloto, a cada corrida dona Karoline reformava o macacão e o deixava com cara e aroma de novo para o próximo desafio do filho Kurt Feichtenberger.

Dias de Glória - 1º Grande Prêmio Brasil de Motociclismo


Graças ao pioneirismo de amantes do vento no rosto como Froes, Dino, Luzio, Nilson e Nicola Limongi, Wilson e Jacy Espirandelli, Paulistinha e outros cuja memória ficou na poeira da estrada, Goiânia inaugurou os anos 80 como um dos principais centros consumidores de motocicletas e formadores de pilotos do país. A cidade contava com um autódromo de primeira linha. “Em termos de traçado e segurança, o autódromo Internacional de Goiânia estava entre os melhores do país”, garante Dino Limongi com a experiência de quem conheceu intimamente os autódromos brasileiros. Em Goiás residiam pilotos que ocupavam o topo do ranking brasileiro e sul-americano de cross e motovelocidade. Se o motociclismo goiano começou a engatinhar nas décadas de 1950 e 1960 apoiado nos braços seguros dos heróis das corridas de rua e do Moto Clube de Goiânia, na década de 1980 ele atingiu a adolescência e, como um típico adolescente, ousou.
Roberto Boettcher, superintendente do autódromo em 1987, e os pilotos Edmar Ferreira e Kurt Feichtenberger formularam e colocaram em prática o ótimo plano de convidar as equipes que disputavam o mundial de motociclismo para treinar a pré-temporada em Goiânia. “Quando o Eddie Lawson chegou no autódromo de Goiânia ele não acreditou no que presenciou, ficou impressionado inclusive com a segurança do circuito. Depois vieram as equipes da Honda e Cagiva”, recorda Boettcher.

GP Brasil: Daytona Bike no Cerrado

¨Toda aquela velha estrada do passado rolava vertiginosamente como se a taça da vida tivesse sido entornada e tudo houvesse enlouquecido subitamente¨. (On The Road, Jack Kerouac)
A primeira corrida de motocicletas, conhecida como "Motorcycle Scrambles", aconteceu em 1897 em Surrey, subúrbio de Londres. Entretanto, o Campeonato Mundial de MotoVelocidade só começou a ser disputado em 1949. O primeiro campeão na categoria 500cc foi o inglês Leslie Graham.
Em 1987, 38 anos depois da conquista de Graham, Goiânia, cilindro de um motor chamado Planalto Central, recepcionou o 1º Grande Prêmio Brasil de Motociclismo, Classe 250 e 500 cc Velocidade. Nos dias 24, 25, 26 e 27 de setembro, a capital de Goiás entrou em erupção, lotada de motociclistas e suas máquinas malucas. O olho do furacão era a Praça Tamandaré, que cuspia motos para todos os cantos da cidade. Goiânia, Daytona Bike Week à brasileira. Na porta dos bares e da boate plantados naquele pedaço do Setor Oeste, as máquinas roncavam nervosas. Esportivas importadas e legalizadas ¨sabe Deus como¨, gigantes e pesadas Amazonas, BMW restauradas, várias Sete Galo, triciclos, inúmeros exemplares da Honda CB 400 e alguns da recém lançada Yamaha RD 350, além de um exame de motos Yamaha 125 cc 2 T e burrões incrementados urrando e ostentando potências reais ou imaginárias para o maior público que o busto do Marechal Tamandaré já avistou nas imediações da lendária praça.
Motocicletas sendo empinadas no meio da multidão, latas espalhadas pelo chão, alguns tombos, polícia realizando intervenções pontuais, uma ou outra representante do sexo feminino mais exaltada passeando em garupas com pouca ou nenhuma roupa, muito álcool e drogas menos lícitas, ânimos acirrados, polícia lançando gás para dispersar a multidão. Rolou um pouco de tudo nas três noites que emolduraram os dias de velocidade, malabarismo e balé sobre duas rodas na pista do Autódromo Internacional de Goiânia.

A corrida


Domingo, 27 de Setembro de 1987, sol, 39º graus na primavera quente da cidade, e nos setores 1 e 2, arquibancada e tribuna especial do Autódromo Internacional de Goiânia, a multidão, ressaqueada e cansada dos agitos noturnos na capital do Cerrado, foi tomada por um forte arrepio e sentiu uma aceleração nos batimentos cardíacos quando os motores das 250cc roncaram para a volta de apresentação da etapa brasileira do Campeonato Mundial de Motovelocidade. Sito Pons venceu a corrida, mas Anton Mang foi campeão antecipado.
Ídolo pop no circo do motociclismo na década de 1980, tetravice-campeão mundial de 500 cc, o piloto Randy Mamola conquistou a torcida brasileira e a tela da Globo nos treinos com uma cena histórica em que, por aproximadamente 200 metros, perdia, encontrava e retomava as rédeas da máquina sem ceder à lei da gravidade.
Campeão no marketing pessoal, nas pistas Mamola ficou com a 3ª colocação. Foi superado pela técnica e a tocada profissional de Eddie Lawson. O ronco dos motores e as manobras radicais dos ídolos mundiais da motovelocidade foram transmitidos ao vivo para mais de 80 países.


Campeões das 500cc nos campeonatos mundiais com a etapa brasileira disputada em Goiânia
1987- Wayne GARDNER
1988 -Eddie LAWSON
1989-Eddie LAWSON

Hora do pesadelo


Segunda-feira, dia 28 de setembro de 1987, a população goianiense foi catapultada do sonho da tribo de malucos, que acampou na cidade com suas máquinas coloridas e barulhentas, para o pesadelo do acidente nuclear com o Césio-137. “Quando aconteceu, ninguém sabe ao certo . A primeira notícia vazou no dia 28 de setembro e o episódio, segundo os catadores de papel, começou cinco dias antes... Desde a primeira semana do acidente começaram a chegar notícias inquietantes dando conta de reservas de hotel canceladas, de suspensão de encomendas e até de tentativa de evitar o estacionamento de carros de Goiânia em outras cidades do país”, relata o jornalista Fernando Gabeira no livro Goiânia, Rua 57, O Nuclear na Terra do Sol.
Apesar do arranhão azul do Césio-137 na imagem do Estado no cenário turístico, a brincadeira se repetiu. Nos anos de 1988 e 1989, o circo do motociclismo mundial plantou o seu mastro na cidade idealizada por Pedro Ludovico Teixeira.

Goianos no pódio



As edições do mundial de motovelocidade realizadas em Goiânia injetaram ainda mais adrenalina e gasolina nas veias dos pilotos locais, que extrapolaram as fronteiras do estado e conquistaram campeonatos regionais e nacionais. Pilotos como Josué Júnior, o Buchecha, cujo primeiro tombo de um máquina de duas rodas aconteceu quando ele ainda habitava o confortável útero materno. “Foi quando a dona Regina Maranhão, minha mãe, com seis meses de gravidez, resolveu dar uma voltinha na garupa e acompanhar meu pai em uma queda de Lambretta", brinca.
Fora da barriga da mamãe, Buchecha teve o seu primeiro contato com um guidon de motocicleta no início da década de 70, monitorado pelo piloto de motovelocidade Evandro Araújo, irmão do aprendiz, que corria de Xispa e Lambretta. Evandro tinha um método de ensino pouco ortodoxo: a cada tropeço de Júnior, o professor aplicava-lhe um cascudo.
A pedagogia da porrada aplicada por Evandro alcançou bons resultados e, no início dos anos 80 do século passado, Buchecha tinha adquirido a estranha mania de desgostar de gastar o pneu dianteiro da motocicleta, uma Yamaha RX 125, e realizava acrobacias em uma roda na praça Tamandaré e no retão do Autódromo Internacional de Goiânia.
"mãetrocinadora"
Foi justamente no retão que o aprendiz de piloto conheceu com grande intensidade o mal que o asfalto faz em contato direto com a pele de um motociclista. "Na primeira metade da década de 1980, sofri um tombo no retão do autódromo a mais de 100 km/h, com o corpo protegido somente por um frágil calção. Ralei até o pensamento. Foi necessário fazer um enxerto nas costas", relembra Buchecha.
Com a intuição apontando para o óbvio, ou seja, que lugar de correr é na pista, em 1983 Buchecha heroicamente disputou os campeonatos Goiano, Brasiliense e Centro-Oeste de motovelocidade, categoria 125. "Sem recursos para montar uma equipe, eu pegava botina emprestada, o carro da minha mãe, um Passat 75. A botina voltava toda ralada, esfolada. Quem emprestava em uma corrida se recusava a emprestar na próxima", diverte-se. Mas o blusão e a motocicleta eram de Buchecha, doados pela paciente e compreensiva Regina Maranhão, espécie de "mãetrocinadora" do iniciante nas pistas.
Mesmo com essa estrutura improvisada, o estreante Buchecha terminou a temporada na elogiável posição de vice-campeão dos campeonatos Goiano, Brasiliense e Centro-Oeste. "O Renato venceu o goiano, e o Márcio Maia, de Brasília, um piloto muito veloz, venceu o brasiliense e o Centro-Oeste".
A arte de se equilibrar em uma roda e a tocada forte de Buchecha pelas ruas da cidade logo despertaram a atenção especial dos "homens da lei" responsáveis pela ordem e a segurança do trânsito na capital. À época, Buchecha corria de blitz como rato foge de gato. Ironicamente, em busca de uma profissão e de um ganha pão digno que garantisse a grana para uma motocicleta, a gasolina e outras despesas necessárias para uma vida descente, em 1986 Josué foi aprovado no concurso da Polícia Militar do Estado de Goiás. 
Evidentemente, o novo soldado terminou no pelotão de motocicletas da PM-GO, no comando de uma Honda CB 450. "Eu acelerava forte e conquistei o respeito dos colegas", orgulha-se. No papel de gato, o jovem militar agia com bom senso, advertindo os motociclistas mais afoitos e ousados antes de ameaçar com a prisão e apreensão da motocicleta. 
Leve descontrole
Considerado à época o melhor motociclista da Polícia Militar goiana, Buchecha foi um dos escolhidos para a escolta do então Ministro da Justiça do governo José Sarney, Paulo Brossard, em visita a Goiânia. Como ponta de lança avançado da escolta, Buchecha, em um determinado momento, decidiu colocar, por conta própria e risco acentuado, a atrasada agenda do ministro no horário. Na avenida Tocantins com rua 3, Buchecha acelerou forte e a Honda CB respondeu com uma empinada radical que durou até o cruzamento com a rua 2, para desespero do sargento responsável pela escolta.
Durante a visita ao Palácio das Esmeraldas, o tenente comandante responsável pela segurança do ministro determinou que nenhum dos integrantes da equipe seria liberado antes de falar com ele. No saguão do aeroporto Santa Genoveva, um assessor do ministro convocou a escolta a pedido do ministro. O sargento coordenador da escolta suou frio e imaginou que o problema criado pelo ás do guidom ganhara contornos ainda maiores. Debaixo de seu inseparável chapéu, Paulo Brossard não economizou elogios. "Em nenhuma capital do Brasil tive uma escolta tão eficiente. Em particular um 
dos senhores que conseguiu retomar o domínio da descontrolada motocicleta no centro da cidade. Anote os nomes dos responsáveis para que o Ministério da Justiça envie um elogio por escrito", ordenou Brossard à assessoria. Surpreso, o coordenador respirou aliviado e reforçou o retórico afago do ministro. 
O cabo Buchecha, como era conhecido no meio miliciano, trabalhou por 12 anos no batalhão de motocicletas e, em 1988, foi para reserva devido um acidente de trabalho que lhe custou fraturas na tíbia e perônio. Em 2005, aos 41 anos, retornou as pistas disputando os campeonatos brasileiro e brasiliense de 500cc.

O menino de Taguatinga 


Dos "peguinhas" no viaduto de Taguatinga para as pistas do Brasil e do mundo. Essa é uma veloz definição da trajetória de Cristiano Vieira na motovelocidade. Após vencer todos os rachas realizados na cidade satélite de Brasília, Cristiano Vieira começou a levar a sério a brincadeira em cima de sua Mobillete e, aos 13 anos de idade, participou da primeira corrida de sua carreira de vitórias no cartódromo de Brasília, em 1985, na categoria ciclomotor. "As minhas duas primeiras corridas foram sem o conhecimento de meu pai, que ficou extremamente irritado quando descobriu. Mas depois ele percebeu que eu tinha jeito para acelerar e me apoiou integralmente", recorda. 
Em 1987, o futuro campeão mudou-se para Goiânia, cidade que contava com um ótimo campeonato da categoria ciclomotor: a Copa Pepsi. "No primeiro ano, eu ganhei o título e no segundo ano cai, machuquei o pé e fiquei em 3º lugar no campeonato". Na Copa Pepsi Cristiano, ironicamente, era patrocinado pela Coca-Cola. "Eu andei vários campeonatos em minha vida, mas o de ciclomotor me marcou muito. Era uma moçada nova, interessada em crescer, um campeonato muito disputado", relembra, saudoso. 
Em 1989, Cristiano Vieira empreendeu um grande salto de categoria, passando a correr, e vencer, na Copa RD 350, a maior categoria brasileira existente à época. "No primeiro ano eu cai muito, mas não desisti. Aprendi mais sobre circuito, motocicleta, mecânica, peguei as "manhas" e, em 1990, fiquei em terceiro no campeonato e fui campeão brasileiro em 1991, com 18 anos". 
Em 1992, surgiu no Brasil a Copa CBR. E Cristiano não perdoou: foi, pilotou e venceu o campeonato brasileiro de CBR. Em 1996, depois de uma experiência mal sucedida no campeonato espanhol devido à carência de patrocínio, o piloto brasiliense radicado em Goiás ficou em 2º lugar no campeonato brasileiro categoria 600cc. No ano seguinte, correndo na categoria 125 GP, motos similares às usadas no campeonato mundial, Cristiano Vieira subiu ao podium como campeão e consolidou seu nome na galeria dos heróis goianos da motovelocidade. Em 1998, foi vice-campeão da categoria e, em 1999, repetindo o feito de 1997, conquistou o bicampeonato na 125 GP. 
Em 2000, Cristiano foi convidado pela Honda para disputar o campeonato espanhol na categoria 250. O piloto terminou em 8º lugar. 
Em 2001, Cristiano voltou ao pódio geral na condição de campeão brasileiro da categoria 600 cc. "Todos os títulos que tinha para ganhar no Brasil eu ganhei. Entretanto, não realizei o meu grande sonho de competir uma temporada no Campeonato Mundial. Eu dediquei toda a minha vida a esse sonho", lamenta.

“Hemoftalmia competitiva”

Segundo o piloto carioca Luiz Carlos Silva Pinto Neto, O Luizinho, grande destaque do motociclismo nacional que disputou o campeonato europeu de super esporte, “Moralles pilota com sangue nos olhos”. Não se trata de generoso exagero de companheiro de pistas e boxes. Os títulos conquistados por Edson Moralles confirmam o piloto carioca. Com pouco mais de 30 anos de idade, o piloto anapolino já tinha conquistado a Copa Duas Rodas, em 2000; o Campeonato Brasileiro na categoria 125 4T, em 2001; o Campeonato Brasileiro na categoria 500 cc, em 2003; o Vice-Campeonato Brasileiro na categoria 600cc, em 2004, e foi escolhido pela Revista Motociclismo Magazine, uma das mais conceituadas publicações especializadas do país, Piloto Revelação de 2001 e Melhor Piloto de Motovelocidade de 2003. 
O avô materno de Edson Moralles, Otacílio Santana, um amante das antigas e relusentes Jawas e Lambrettas, despertou na família a paixão por veículos de duas rodas. Capturados pelo vírus das pistas, Antônio Edson Moralles, o pai, e Itamar Santana Rodrigues, o tio de Edson, participaram, na década de 1970, do Campeonato Brasileiro de Motovelocidade, categoria 125. "Eu sempre quis vencer para homenagear e honrar os nomes do meu pai e do meu tio", confessa o piloto. Com apenas sete anos de idade, o hoje campeão se aventurou pela primeira vez no comando de um guidon de motocicleta, dando algumas voltinhas em uma mini-moto de um amigo do pai no autódromo de Goiânia. Logo veio a primeira máquina, uma Yamaha RX 80. Depois de se divertir acelerando a modesta "oitentinha", Edson Moralles não parou mais, só fez pit-stop. " Era um sonho de meu pai me assistir nas pistas, mas, infelizmente, Deus o levou antes de ter esse sonho concretizado".
Piloto Revelação
Em uma dessas coincidências que o destino mais complica do que explica, meses depois do falecimento de Antônio Moralles a Moto Limongi, Moto Três e Associação Duas Rodas de Motociclismo promoveram a Copa Duas Rodas, destinada a pilotos amadores e a revelação de novos talentos no motociclismo goiano. Edson Moralles e os irmãos montaram uma 125 especial e o candidato a piloto venceu as duas etapas, sagrando-se campeão da Copa. 
No ano seguinte, 2001, Moralles disputou o Campeonato Brasileiro, categoria 125 4T. "No meu ano de estréia no brasileiro venci todas as etapas das quais participei e conquistei o vice-campeonato", relembra.
Surgia uma nova revelação na motovelocidade brasileira. Moralles foi destaque em todas as revistas especializadas do país. Em 2002, o piloto saltou para a categoria 500cc com uma Honda CB 500. Faltou patrocínio e Edson desistiu. "Até a motocicleta era emprestada de um amigo de Brasília", recorda com o gosto amargo da falta de apoio. 
Em 2003, ano em que a Honda do Brasil comemorou 6 milhões de motocicletas produzidas no país, ainda sem patrocínio e com muita raça e força de vontade Moralles vendeu alguns bens e comprou uma CB 500 financiada. Conseguiu patrocínio da Moto Limongi e assessoria e preparação do tio Itamar e do mecânico Marcelo Rafael. "Desde o inicio o tio Itamar esteve ao meu lado. É como um pai para mim", confessa emocionado. Com o apoio dos amigos e muito braço, Moralles foi campeão brasileiro das 500cc.
No ano seguinte, nova mudança, agora para a categoria 600cc. Entretanto, o patrocínio insuficiente mais uma vez barrou o talento e os sonhos de vitória de Moralles. Mesmo assim, correndo com um braço quebrado em uma queda na terceira etapa da competição, o menino de sangue nos olhos foi vice-campeão. 
Em 2005, participou apenas de 5 etapas e abandonou o campeonato por problemas no ombro e a crônica falta de patrocínio. 

Em sua meteórica carreira na motovelocidade, Edson Moralles provavelmente correu mais atrás de patrocínio do que nas pistas. Nas pistas Moralles conquistou melhores resultados. Entretanto, viciado em vencer o piloto com “hemoftalmia competitiva” não desiste diante das dificuldades. "Desde quando me entendo por gente gostei de motociclismo. Correr para mim não é hobby, é minha vida, está no sangue e foi um dom doado por Deus". 
Tudo ou nada
De acordo com Edson Moralles, a corrida que mais marcou sua carreira foi disputada no Rio de Janeiro, na antepenúltima etapa do brasileiro de 2003. "Eu estava pensando em parar por causa das dificuldades de patrocínio. Era uma corrida tipo tudo ou nada. Eu venci e me posicionei bem para ser campeão da temporada".
O piloto segreda que nos 10 minutos antecedentes a uma corrida vem uma estranha vontade de desistir. "Entretanto, quando a motocicleta funciona só vem um pensamento: vencer a corrida. Mesmo com um equipamento ruim eu não tiro a mão", garante com um sorriso sincero.

Um homem na estrada


Início do século XXI. A molecada que roletava pelos bares da Tamandaré e outros points “massas” nos movimentados anos 80 do século XX, no lombo duro de utilitárias com poses de esportivas, cresceu. Nevaram em seus cabelos. Outros cabelos não esperaram a neve. Uma barriguinha saliente acomodada no cinto, trabalho, contas a pagar. Entretanto, na garagem, merecidamente mais espaçosa, em lugar privilegiado e vistoso repousa um cavalo negro de aço e cromo. Uma ponte sobre rodas ligando o adulto responsável aos ventos da adolescência. Os ex-moleques da “motoquinhas barulhentas” são, agora, os respeitáveis malucos das máquinas cromadas.
Ideias arejadas, o médico João Batista Alencastro é o típico cavaleiro pós-moderno de roupa negra e DNA da saudosa Tamandaré que hoje desbrava as estradas e ruas do mundo. “Sou um menino, um jovem de 40 e poucos anos de idade”, depõe.
A primeira moto que o garoto João pilotou, com apenas 13 anos de idade, foi uma Honda CG125, a clássica e resistente motocicleta conhecida afetuosamente por “Burrão”. A modesta utilitária made in Zona Franca de Manaus também foi a responsável por apresentar o irremovível e duro chão ao ousado candidato a motociclista. “Aprendi a andar de moto com meu tio Rui, que, infelizmente, partiu em um acidente de moto”, emociona-se.
Entretanto, o coração goianiense de Alencastro bate em compasso alegre e acelera forte quando o veterano motociclista relembra das tardes e noites das décadas de 1970 e 1980 na louca Praça Tamandaré. “Foi uma fase extremamente agradável. Sábados e domingos divagando sobre máquinas no hotel e restaurante Papillon”.
À época, as máquinas que arrepiavam os cabelos dos braços de muito marmanjo dublê de piloto eram a Honda CB 400, a maior moto nacional, a Honda Gold Wind 1000, importada de 999 cc e motor quatro cilindros contrapostos, e a Honda CB 750Four, motor de quatro cilindros em linha, quatro escapamentos cromados, escolhida a “Moto do Milênio” em uma eleição promovida por várias revistas especializadas do mundo. “Eu não tive nenhuma dessas motos mas as amei profundamente”, entrega Alencastro.

Retão
Outro ponto de encontro da meninada que surfava em duas rodas era o retão do autódromo de Goiânia. “Confesso que frequentava e descia o retão do autódromo, deitado no banco e trocando a marcha com a mão esquerda. Como sou canhoto trocava a marchas com extrema rapidez”, sorri um sorriso adolescente. Contudo, se justifica. “Quando se é menino há o mágico pensamento de que nada acontece de ruim. Hoje eu ando devagar, com cuidado”. Tá bom, a gente acredita João Batista.
Acometido pelo vírus da estrada, em 1982, no lombo de uma Honda XLX 250 R vermelha, a máquina da fábrica japonesa que substituiu o “trator” XL 250, o aventureiro percorreu a costa nordestina. “A XLX era uma moto muito confiável e tinha um único defeito: o coice do pedal, que cobrava uma certa resistência da canela do piloto”, rememora com precisão.
Em 1999, na previsível e deliciosa companhia de uma Harley Davidson Dyna Glide, João Batista percorreu o sonho de 11 em cada 10 amantes de duas rodas: a Rota 66. “A paisagem geográfica dos EUA é belíssima: florestas, desertos, montanhas, Oceanos Pacífico e Atlântico. Rodei mais de 7.500 km nos EUA e não vi um buraco. É um cenário esculpido para motos estradeiras”, recorda com brilho nos olhos. “O caminho interior também é muito bonito. Refletir sobre a vida tendo como moldura a América profunda”, divaga.

Chuva, bebida alcoólica e noite


Indiscutivelmente aficionado, Alencastro pilota motocicleta cotidianamente e o carro só abandona a garagem para passeios com a família. “Eu acho um absurdo o cara comprar uma moto de milhares de reais para passear no final de semana. Provavelmente ele vai cair por falta de perícia”.
Para o veterano, a regra para uma pilotagem segura é simples: “Moto tem duas rodas e foi feita para cair. Se você pilota mal e não respeita os limites da máquina, o seu destino é o chão”.
Na opinião do experiente motociclista, três ingredientes não combinam com motocicleta: chuva, bebida alcoólica e noite. “Não uso bebidas alcoólicas, não piloto na chuva e à noite somente em perímetro urbano”.
Quando esse médico vai criar juízo e se deslocar como um ser humano da era industrial, ou seja, sobre quatro rodas? A resposta é rápida e certeira, semelhante a uma arrancada de uma máquina de grande cilindrada. “Jamais deixarei de pilotar motocicletas. Quando a idade pesar e os reflexos falharem compro um triciclo para sentir o vento no rosto”. Definitivamente, João Batista Alencastro é um homomotociclisticus.

Harley não tem defeitos, tem características

Em algum lugar numa autoestrada deserta /Ela dirige uma Harley-Davidson /Seus longos cabelos loiros esvoaçando no vento /Ela passou metade da vida dirigindo /O cromo e o aço, que ela monta /Colidindo com o mesmo ar que ela respira/O ar que ela respira... (Unknown Legend- Neil Young)



A Harley Davidson não depende exclusivamente da venda de motocicletas para sobreviver. A Harley vende uma imagem, um ícone, uma filosofia de vida. A cada dólar colhido na venda de uma moto, entram 2,5 no caixa da marca da venda de collectibles. Vender motos é, na verdade, o segundo bom negócio da Harley.

Insanidade responsável

Idealizador, fundador e líder de uma das mais experientes, respeitadas e solicitadas equipes de Motoshow Acrobático do Brasil, Marcos Mendes de Souza, o popular Doideira, é um símbolo anárquico do motociclismo goiano. No inicio da década de 1980, sob o olhar petrificado do busto do almirante Tamandaré e cavalgando uma Yamaha RX 125, Marcos Doideira causava sensação ao empinar a pequena máquina e mantê-la por longos metros em uma só roda. “Eu comecei a andar em uma roda e gostei”, resume.
A alcunha Doideira é um apelido familiar, que um irmão colocou como forma de provocação e acabou consolidada pela forma arrojada e destemida do piloto se comportar sobre duas rodas.
Nos anos 80 do século XX, atuando como entregador de jornal no Diário da Manhã, Marcos era considerado o motociclista mais rápido da equipe. Enquanto os outros iniciavam as entregas às 5 horas da matina para terminar as entregas cinco horas depois, o futuro rei das acrobacias iniciava seu roteiro às 8 horas para concluir, rápido e certeiro, às 10 horas. “Os caras das bancas diziam: lá vem o doidão do Diário da Manhã”, sorri.
No cargo de vendedor da loja Tonin Bala, Doideira percebeu a possibilidade de profissionalização das loucuras realizadas nas ruas. “Eu viajava com Tonin nas corridas de motocross para fazer apresentações e comecei a me profissionalizar”.
Curiosamente, o Doideira, que na década de 1980 corria de policiais que tinham certa dificuldade em aceitarem os shows públicos e informais do ás do guidon, no século XXI é o responsável pelo treinamento do Grupo de Intervenção Rápida e Ostensiva, o GIRO da Polícia Militar do Estado de Goiás. “O fato de treinar o GIRO da PM contribuiu para melhorar a imagem da marca Doideira. Até então Doideira era sinônimo de loucura, bebidas e drogas”, reconhece. Uma fama injusta, segundo ele, pois a equipe é extremamente profissional e careta, não mistura bebida com pilotagem e não usa drogas. O vício da galera é, decididamente, a adrenalina em doses generosas circulando nas veias.


Para Doideira, os anos 80 do século passado foram os melhores em termos de motociclismo em Goiânia. “Na década de 80 tinha uma quantidade menor de motocicletas rodando em Goiânia e menos pilotos que realizavam uma pilotagem mais arrojada, mas foi uma época muito boa, apesar dos tombos e acidentes”, recorda com saudades. O piloto garante que na época quem rodava sobre uma Honda CB 750four era “o cara”. “A Honda CB 400 nacional também fazia sucesso”, assinala.Outra máquina lembrada com respeito por Doideira: a Yamaha RD 350, apelidada de Viúva Negra. Fabricada no Brasil de 1986 a 1989, a Viúva oferecia um desempenho agressivo, com o ponteiro do velocímetro saltando de 0 a 100Km/h em apenas 5.3 segundos. “Era uma moto muito violenta, muito veloz. Na primeira vez que pilotei uma, empolguei com o acelerador e encontrei o chão”. De acordo com Marcos Doideira, a 350 esportiva da Yamaha atingia 200 km/h, tinha bons freios, mas era muito leve, pesando aproximadamente 150 kg. “Quando se exigia muito dos freios, ela desaparecia debaixo do piloto”.

Segurança em uma roda


O piloto que já atingiu 209 km/h equilibrando-se na roda traseira da máquina e, muitas vezes arrancou na porta do Autódromo Internacional de Goiânia em uma roda e voltou a tocar a roda dianteira no chão após o viaduto da BR-153, não abre mão da segurança. Na opinião de Doideira, conscientização, responsabilidade no trânsito, um curso de pilotagem defensiva e andar sempre equipado são comportamentos que garantem vida longa ao motociclista. “Não existe moto perigosa, perigoso é o condutor. O condutor de motocicleta deveria passar por um processo mais rigoroso de aprendizagem para conseguir uma CNH”, defende.
Quanto à mistura álcool e guidon, Doideira é taxativo. “Bebida alcoólica não combina nem para andar sobre duas pernas, imagina em cima de duas rodas. Infelizmente muitos não têm essa consciência. É melhor deixar a motocicleta no local da bebedeira e acordar no outro dia com a incumbência de buscá-la do que amanhecer com os ossos quebrados em um hospital”. O Doideira encaretou? “Não. O Doideira está ficando mais responsável, aprendendo a pisar no chão com mais firmeza, pensando no amanhã com mais lucidez”, responde rápido.
Perdas e ganhos
Apesar de lamentar profundamente a perda de amigos motociclistas como o piloto Caveirinha e o artista Bráulio, que transformava tanques de motocicletas em verdadeiras obras de arte, Marcos não esconde a sua paixão por motocicletas. “Tudo que tenho hoje foi conquistado em cima de uma motocicleta. Quando vou para praia de férias e fico sem pilotar alguns dias sonho que estou andando de moto. Agradeço a Deus por não ter tirado minha vida antes de assistir tudo de bom que está acontecendo em termos profissionais”, assinala emocionado. ¨Vou andar de moto até ficar velhinho”, garante, com um brilho insano no olhar.